Quem ganha e quem perde com a não paralisação do setor da construção?
Em nome da manutenção dos interesses e privilégios de poucos, milhares de trabalhadores arriscam suas vidas em obras não prioritárias no contexto da pandemia
O governo federal e grande parte dos outros níveis de governo definiram a construção civil como uma atividade essencial, portanto o setor nunca chegou a paralisar. Tanto no estado como no município de São Paulo, a construção foi incluída entre as atividades essenciais por decretos editados no dia 23 de março, antes mesmo da União que incluiu o setor por meio de um decreto de 8 de maio[1]. Por um lado, alguns tipos de obras são realmente fundamentais, como aquelas destinadas a reformar ou construir instalações ligadas à rede de serviços de saúde para atender as novas e urgentes demandas surgidas com a pandemia; para ampliar a oferta de saneamento básico, essencial para evitar a contaminação pelo vírus; ou para adaptar espaços para abrigar pessoas sem condições de moradia que permitam realizar medidas de isolamento social. Por outro lado, o que justificou a continuidade de toda outra gama enorme de tipos de construções em curso, como shoppings centers, edifícios residenciais e corporativos de luxo, e obras públicas não relacionadas ao combate ao Covid? E qual o impacto em termos da saúde coletiva da não paralisação dos milhares de trabalhadores da construção civil?
Segundo dados da última pesquisa Relação Anual de Informações Sociais – RAIS fornecidos pelo Ministério do Trabalho, havia, em 2018, no Brasil, cerca de 2 milhões de trabalhadores formais na construção, a maior parte deles concentrados em capitais e regiões metropolitanas, que representam os principais focos de propagação do vírus. Só na Região Metropolitana de São Paulo, epicentro da pandemia, havia 309 mil trabalhadores formalizados na construção, e 540 mil no estado como um todo. Se forem somados os trabalhadores informais estes números são ainda maiores. Segundo estimativa do Sindicato dos Trabalhadores das Indústrias da Construção Civil – SP (Sintracon) o número de operários no estado estaria hoje em torno de 680 mil. Se fosse uma cidade, estaria entre as 10 mais populosas de São Paulo e entre as 40 mais populosas do país.
A maioria dos empregados nessa área ocupam postos com baixa remuneração, a média salarial no setor, em 2018, era de 2,5 salários mínimos. Como revelam os dados do último Censo (2010), a maior parte dos trabalhadores da construção trata-se de homens não brancos (60%), situação que contrasta, com aquela parcela menor com níveis mais altos de instrução e com maiores salários, como engenheiros e arquitetos, representados por pessoas majoritariamente brancas. Se compararmos os salários dos empregados com os sobrelucros dos donos e acionistas das grandes incorporadoras e empreiteiras, em grande parte oriundos de tradicionais famílias da elite branca brasileira, as assimetrias de ganhos dentro do setor são infinitamente mais discrepantes. Tanto os proprietários como parte dos empregados com maior escolarização puderam optar por continuar suas atividades protegidos no conforto dos seus lares, diferentemente da maioria dos operários. A perversidade desse quadro revela mais uma daquelas contradições representativas do racismo estrutural arraigado na nossa sociedade, que tem levado milhares de pessoas às ruas nas últimas semanas no mundo todo e no Brasil.
Como não há política de testagem em massa, nem pelo Estado, nem por parte das empresas, os dados a respeito do contágio no setor da construção são precários, mas algumas pesquisas parciais apontam indícios alarmantes. Segundo nota divulgada em 26 de maio pelo Sinduscon-SP (Sindicato da Indústria da Construção Civil do Estado de São Paulo), o Seconci-SP (Serviço Social da Construção Civil do Estado de São Paulo, entidade sem fins lucrativos que presta serviços de saúde ao setor da construção) realizou testes rápidos em 1.200 operários, dos quais 30% obtiveram resultado positivo para Covid 19. Essa porcentagem se aproxima da apresentada em uma matéria no portal G1 pelo Sintracon, que divulgou que de um total de 15 mil trabalhadores testados no estado de São Paulo, aproximadamente 28% apresentaram resultados positivos para o vírus.
Este cenário contrasta frontalmente com os dados apresentados pela Abrainc (Associação Brasileira de Incorporadoras e Imobiliárias), entidade composta por grandes firmas do setor, que a partir de uma pesquisa semanal baseadas em informações fornecidas por 36 de suas empresas associadas, contemplando mais de 700 obras e mais de 60.000 trabalhadores, apontam para uma estimativa de apenas 347 infectados (0,58%), 5 internados em hospital (0,01%) e 8 óbitos (0,01%) no acumulado de 13 semanas da pesquisa. Não fica claro qual o universo de operários que chegou a ser de fato testado nesta pesquisa, e a ausência de informações sobre as metodologias aplicadas no processo de testagem pelas diferentes entidades dificulta a comparação. A falta de transparência e publicidade adequada sobre essas informações de extrema relevância para saúde coletiva e dos trabalhadores é outro gargalo do problema, que aponta para o descaso com que a situação vem sendo tratada.
Em uma pesquisa da COOPE da UFRJ o risco de contaminação de um pedreiro no canteiro foi classificado como 57, considerando uma escala que varia de 0 a 100, devido ao nível de exposição ao contato com outras pessoas. Contudo, em entrevista a AECweb o presidente do Seconci, Haruo Ishikawa, observa que o principal foco de contaminação para os trabalhadores é o transporte público. Como a saúde é coletiva, a circulação de milhares de trabalhadores expõe suas próprias vidas, mas também de seus familiares e de toda a população que não pode fazer o isolamento social. O enquadramento de atividades cuja a essencialidade é questionável, como uma série de obras não emergenciais, corroborou para diminuir a efetividade das medidas de isolamento social, e estamos vivendo as consequências disso atualmente.
Por mais que haja esforços no sentido de pensar medidas para diminuir os riscos de contágio dos operários, como o documento de recomendações ações de combate ao COVID-19 desenvolvido em parceria Abrainc, Seconci-SP, Secovi-SP, Sinduscon-SP e com apoio do Sintracon-SP, é praticamente impossível evitar os graves riscos de contaminação aos quais os trabalhadores são submetidos nos longos caminhos nos transportes públicos para chegar ao seu local de trabalho, como reforça a pesquisa feita pelo Labcidade, da Universidade de São Paulo. Devido ao fato de ter sido definida como uma atividade essencial, o setor não ficou obrigado a firmar protocolos junto ao poder público, o que poderia agregar outras medidas discutidas com as autoridades sanitárias públicas, que servissem de parâmetro para um monitoramento e fiscalização por parte dos órgãos competentes.
Parte das empresas não vem sequer seguindo as recomendações mínimas de amenização do contágio discutidas entre as entidades do setor, segundo estimativas do Sintracon essa é a situação de ao menos 20% das empresas no estado de São Paulo. Esta questão já ocasionou a paralisação de canteiros de algumas incorporadoras, como a Cyrela, Matec, e a Lock. As obras paralisadas relacionavam-se a empreendimentos de altíssimo luxo, ou seja, tratam-se de obras definitivamente não prioritárias. Vale a pena lembrar que a Cyrela encontrava-se em 2019 entre as 5 maiores incorporadoras que atuam na região metropolitana de São Paulo, segundo o ranqueamento da EMBRAESP divulgado pela revista “O empreiteiro”. Outra gigante do setor, a Queiroz Galvão, que ocupava em 2019 nada menos que a primeira posição entre as maiores construtoras do país segundo o mesmo ranqueamento, teve obra paralisada por determinação judicial após pedido da Prefeitura de Caraguatatuba. A justiça determinou, em caráter liminar, que as obras de duplicação da rodovia Tamoios fossem paralisadas, alegando não se enquadrarem como serviço essencial e não estarem respeitando as condições de segurança nos canteiros de obras, colocando em risco os trabalhadores. No entanto, dias depois, com recurso apresentado pela empresa Queiroz Galvão e a Concessionária Tamoios, as obras foram retomadas após decisão emitida pelo Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP) “sob pena de se instaurar um verdadeiro caos administrativo”.
Ainda, a decisão do STF, por maioria, deixou em aberto a interpretação que enquadraria a contaminação por COVID-19 como acidente de trabalho. Este fato aprofunda o quadro de perversidades as quais os trabalhadores estão submetidos. Sem esse entendimento, caso sejam contaminados em ambiente de trabalho, os operários ficam sem meios de acessar os direitos previdenciários e trabalhistas, a exemplo do acesso ao auxílio doença acidentário, obrigação de recolhimento de FGTS no período de afastamento e riscos de condenação em ações indenizatórias.
Cabe relembrar, que, independentemente do contexto da crise sanitária, a construção já é comumente um dos setores que proporcionalmente mais mata por acidentes de trabalho (como apontado pela pesquisa de Melissa Ronconi), e é também um setor que contribui decisivamente para o aumento do número de doenças em decorrência do trabalho, incluindo enfermidades relacionadas às comorbidades que aumentam os riscos das pessoas que contraem o Coronavírus, como doenças respiratórias (como assinalado por outros trabalhos). A prática estabelecida por grande parte das empresas da construção no contexto atual da pandemia, reforça a negligência histórica para com as vidas dos operários, que constituem o elo mais vulnerável dentro da cadeia da construção civil.
A não paralisação das atividades de construção foi uma medida defendida pelas empresas e pelo poder público desde o início da epidemia de COVID-19 no Brasil. A correlação de forças é clara. Desde o início da pandemia, observa-se a convergência de interesses – tanto do setor privado, quanto dos diversos níveis de governo – na manutenção das obras, inclusive aquelas que não se colocam como emergenciais (shoppings centers, edifícios residenciais e corporativos de luxo, entre outras).
Por fim, devemos nos atentar que não há plano de governo federal pós-pandemia que aponte para uma estratégia clara de crescimento econômico sustentado, com garantia de distribuição de renda e inclusão social. Alguns setores dentro do governo, como o Ministério da Infraestrutura, sinalizam para alguma possibilidade de utilização da construção civil como mecanismo para retomada da economia nacional, entretanto sem apresentar nenhum plano concreto. Se isso de fato ocorrer, este setor que historicamente baseia-se na profunda precarização da mão-de-obra, e que nesse momento da pandemia foi sacrificado para manter os lucros e interesses de poucos, possivelmente servirá como alavanca para a “retomada da economia” baseada na exploração desses trabalhadores.
Texto elaborado pelo Grupo de Trabalho Construção e Pandemia do IAB – SP, composto por Ana Gabriela Akaishi; Danilo Hideki; Laisa Stroher; Lucas Ferreira; Samira Rodrigues, com colaborações de Melissa Ronconi, Thaís Velasco (GT Habitação do Observatório das Metrópoles do Rio de Janeiro), Felipe Catelani e Lucas Faulhaber.
[1] No caso do Estado de São Paulo, o governador João Doria estabeleceu o setor como atividade essencial através da Deliberação 2, de 23 de março de 2020, por meio do Decreto 64.864/2020. No município de São Paulo o mesmo ocorreu pelo decreto nº 59.298 de 23 de março de 2020. Já no governo federal o decreto nº 10.344 de 08 de maio deste ano disciplinou o tema.